Você escuta uma guarânia no rádio e o apresentador falando em guarani. Vai a padaria e compra meia dúzia de chipas. No final da tarde, compartilha com os amigos uma rodada de tereré bem gelado. Você pensa que está no Paraguai? Certo? Errado. Isto é Mato Grosso do Sul, o lado mais paraguaio do Brasil. Estima-se que 300 mil paraguaios e descendentes habitam o Estado, sendo pelo menos 80 mil famílias com base em Campo Grande. É disparado a maior colônia de imigrantes do MS. Onze municípios paraguaios fazem fronteira com o Estado e uma boa parte do território hoje sul-mato-grossense foi anexado (legalmente?) após a Guerra do Paraguai. A influência é tanta que em 2001 foi instituído em MS o Dia do Povo Paraguaio, comemorado todo 14 de maio, justamente o dia da independência do Paraguai da metrópole espanhola.
A cultura paraguaia está impregnada nos costumes sul-mato-grossenses. E cada vez mais aceita pela população. Até porque a colônia é numerosa e acaba conquistando a Capital e interior do Estado com costumes que tem tudo a ver com o clima da região, por exemplo. Em dias de calor escaldante, não há quem regule o refrescante tereré. Ao entardecer já virou coisa corriqueira as famílias e amigos irem para frente das casas tomarem a bebida e jogar conversa fora. Mesmo nas repartições públicas, escritórios e empresas particulares o tereré é apreciado do patrão ao motorista. O tereré já virou uma instituição em Mato Grosso do Sul, assim como o sobá vindo dos descendentes de Okinawa.
Sobá - foto de amambainoticias
Um exemplo da força da cultura paraguaia no MS é a Associação Colônia Paraguaia. Fundada em 1973, é a maior do país com 740 famílias associadas. Possui sede própria na Vila Pioneiros e realiza diversas atividades artísticas e encontros sociais. Reúne aproximadamente mil pessoas no segundo domingo de cada mês em que organiza o churrasco típico paraguaio. Uma das datas mais esperadas é 8 de dezembro, quando a associação promove a Festa da Virgem de Caácupe, a Padroeira do Paraguai. São várias novenas que passam pelos bairros onde residem as famílias e descendentes de paraguaios, encerrando na sede da instituição. No local foi construído uma réplica da imagem que se encontra no Santuário de Caácupe, no Paraguai, onde milhares de pessoas vão pagar promessas.
Sede da Colônia Paraguaia em Campo Grande - MS
O presidente da associação, Amado Leite Pereira, lembra que a Vila Popular, em Campo Grande, é um verdadeiro reduto paraguaio na Capital. Pelo menos 80% da população do bairro são de paraguaios e descendentes. Isto porque os primeiros paraguaios que vieram para a Capital eram tropeiros, que lidavam com gado de corte, e se instalaram na região porque o lugar que hoje fica a Vila Popular era onde tinha os frigoríficos. Apesar da presença numerosa da colônia no Estado, ele admite que faltam mais projetos em parceria entre Brasil-Paraguai. “Já existem alguns na área de saúde e educação. Muitos brasileiros estudam em Pedro Juan Cabalero e outro tanto de paraguaios aqui em Campo Grande. Temos também o SUS Fronteira para atender os paraguaios que vivem em cidades fronteiriças com o Brasil. Mas ainda é pouco”, afirma Amado.
Um dos objetivos do presidente é montar uma associação de músicos do Paraguai em Campo Grande. “Temos pelo menos 80 músicos vivendo na Capital atualmente e em situação crítica. A maioria não consegue sobreviver somente da música”, alerta Amado. A época de ouro da música paraguaia em Campo Grande aconteceu da década de 50 aos anos 80. Neste período era comum nos restaurantes, festas de aniversário e eventos sempre ter uma dupla de paraguaios tocando harpa e violão. Hoje são inúmeros os grupos paraguaios na Capital, como Los Celestiales, Los Latinos, Los Divinos e o cantor Benitez Ortiz, um dos mais conhecidos da cidade. O cachê em média cobrado é de R$ 600,00 por três horas de apresentação.
O violonista Cristobal Urbieta, natural de Assunção e componente do grupo Alma Latina, se impressiona quando testemunha em terras sul-mato-grossenses milhares de pessoas bailando ao som da polca paraguaia. “O povo adora dançar polca aqui em MS, coisa que no próprio Paraguai já é difícil de acontecer nos últimos anos. O sul-mato-grossense parece mais ligado ao costumes paraguaios do que os próprios paraguaios”, surpreende-se Cristobal. O harpista do Alma Latina, Fábio Kaida Barbosa, é uma prova disso. Natural de Campo Grande, e sem descendência paraguaia, aprendeu a tocar harpa, instrumento genuinamente paraguaio, e diz que leva o Paraguai no coração.
Harpa Paraguaia - divulgação: internet
Fábio não se conforma que o destino dos grupos de música paraguaia seja tocar apenas em festas de aniversários, bailes e restaurantes. “Até hoje quem é conhecido no Brasil como músicos paraguaios é a Perla e o Luiz Bordon. E eles só conseguiram porque fizeram um trabalho mais profissional. O mais difícil é ter um produto de qualidade para mostrar ao público. Nós temos que fazer mais shows, parar de fazer só festinhas e restaurantes. A música paraguaia tem que ir para os teatros também. Por que não vamos tocar na França como fazem os argentinos com o tango? Temos que sair do amadorismo, nos profissionalizar, ir para São Paulo e Rio de Janeiro e não ficar só aqui”, desabafa o harpista.
Mas mesmo não tendo destaque na grande mídia, a música do Paraguai influenciou demasiadamente os compositores de MS. Por causa desta influencia a produção musical sul-mato-grossense é diferenciada. Artistas como Paulo Simões, Geraldo Roca, Geraldo Espíndola e Almir Sater flertam com guaranêas, polcas e chamamés, misturam o guarani com o português e utilizam fatos da História como inspiração. Exemplos não faltam! Rio Paraguai e Polca Outra Vez, de Geraldo Roca, por exemplo. Ou Sonhos Guaranis, de Almir e Paulinho, música em que a dupla de compositores se refere a MS como ‘a fronteira em que o Brasil foi Paraguai’.
Influenciados por esta trupe, surge a polca-rock, levando ao extremo a fusão dos ritmos paraguaios com ska, reggae, funk, blues e rock’n roll. “Esta influencia veio de forma natural porque crescemos ouvindo a música paraguaia. Em minha casa tinha muitas serenatas com duplas paraguaias e o Paraguai já estava cantado nas músicas que meus irmãos compunham. Por isso a música moderna daqui ganhou este toque diferente de tudo que se faz no Brasil, o que se torna uma barreira para cair no gosto popular do país”, reflete Jerry Espíndola, um dos cabeças da polca-rock.
Além da música, a gastronomia sul-mato-grossense também reflete o Paraguai. Se o tereré virou uma instituição, a chipa é frequente na mesa do cidadão de MS e sucesso de vendas nas padarias. A sopa paraguaia também é admirada pela maioria da população. Aos poucos as receitas acabam sendo abrasileiradas pelos culinaristas. “A comida do Paraguai é muito rica e caiu no gosto daqui porque se parece com a culinária gaúcha e mineira, justamente os povos que juntos com o paraguaio desbravaram este Estado. O desafio não só para mim, mas para os cozinheiros daqui, é sofisticar esta comida e ultrapassar fronteiras. E apresentar novidades, como a sopa paraguaia com catupiry que estou fazendo”, afirma Mestre Daves, um dos culinaristas mais requisitados do MS.
Chipa e Pão de Queijo - lado a lado na vitrine das padarias de Mato Grosso do Sul
Outro costume que vem do Paraguai é o sapucai. A palavra quer dizer grito em guarani e são aqueles urros que se dá quando começa uma música agitada. No MS bastam os primeiros acordes de uma polca paraguaia para alguém puxar os gritos. Música esta que pode estar sendo ouvida em vários programas de rádio, como o Ñe Ê Ngatu A Hora do Chamamé, que tocam clássicos paraguaios, tipo Recuerdo de Ypacaray, Mercedita e Pajaro Campana. O sapucai equivale ao jodl vindo dos países dos Alpes e utilizado pelos camponeses para se comunicar de uma montanha a outra. Os paraguaios usavam o sapucai também como sinais na lida do gado. Em Assunção, diz-se que o sapucai vem de antes, quando os índios guaranis partiam para as batalhas, o que os soldados paraguaios também faziam nas sangrentas batalhas que tiveram com brasileiros, uruguaios e argentinos na Guerra do Paraguai.
Aliás, a Guerra do Paraguai, além de ter tornado o Paraguai um dos países mais pobres da América do Sul, provocou a diminuição do seu território. Mato Grosso do Sul é a maior prova disso. Municípios sul-mato-grossenses como Ponta Porã, Porto Murtinho, Miranda, Bela Vista, Jardim e Maracaju foram tomados dos paraguaios após a guerra, numa apropriação de terras estrangeiras que aconteceu em outros estados também como Rio Grande do Sul, Paraná, Rondônia e Acre. Até a cidade de Nioaque, que fica a uns 200 km de Campo Grande, tudo era Paraguai, esta é a verdade. Por isso, nem podia ser diferente: o sul-mato-grossense é o brasileiro mais paraguaio do país.
Texto: Rodrigo Teixeira
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